Descubra como objetos cotidianos podem refletir sua jornada de autoconhecimento em uma crônica sobre memória, tempo e imaginação.
Ilustração reprodução

Descubra como objetos cotidianos podem refletir sua jornada de autoconhecimento em uma crônica sobre memória, tempo e imaginação.

O ar da sala parecia dançar naquele fim de tarde, carregado de um calor úmido que grudava na pele como um velho amigo insistente. Eu me esparramava no tapete áspero, o cheiro de madeira antiga da estante misturando-se ao leve aroma de cera que minha mãe passava nos móveis aos domingos. O 2 em 1 Philips, modelo 842, reinava absoluto no canto, com seu toca-discos e rádio AM/FM, um troféu suado do meu pai, comprado com o peso de horas extras que eu só entenderia anos depois. A agulha caía com um estalo suave no vinil de Thriller, e Michael Jackson invadia o espaço com Billie Jean, cada nota um portal que me arrancava do chão e me jogava num universo onde o tempo não tinha pressa.

Eu segurava o Aquaplay de futebol com as mãos pequenas, os dedos já calejados de tanto apertar os botões de borracha. A água dentro do brinquedo balançava, empurrando a bolinha de isopor entre os jogadores minúsculos, e eu ria sozinho, perdido naquela dança aquática. Era um presente da Estrela, daqueles que marcavam os anos 80 como um selo de simplicidade feliz. Às vezes, trocava com um primo – ou seria um amigo? – que tinha o de basquete. A gente negociava como se fossem tesouros, e eu me sentia um estrategista, um líder de brincadeiras, sem saber que ali já ensaiava algo maior, uma busca por entender o que move as pessoas, os jogos, a vida. 

Na estante, o despertador da Copa de 70 tilintava seu tic-tac hipnótico. O jogador, com sua perna balançando ao ritmo dos segundos, era um guardião silencioso do tempo. Eu o encarava, fascinado, sem saber que ele carregava mais do que horas – carregava histórias que meu pai, entre uma cerveja e outra, talvez me contasse um dia. Ao lado, a máquina de escrever portátil amarela, que virava malinha, era meu portal secreto. Batia nas teclas com força, imaginando que digitava códigos de um futuro que ainda não existia, um eco distante dos computadores que chegariam nos anos 90, trazendo telas brilhantes e promessas de conexão.

Enquanto o vinil girava, eu me perdia em pensamentos que não sabia nomear. A sala era um palco, e eu, um espectador e ator ao mesmo tempo. O som de Michael misturava-se ao barulho da rua – crianças gritando, o ronco de um fusca, o sino da igreja ao longe. Tudo parecia conspirar para me fazer sentir algo maior, como se cada detalhe fosse um fio numa tapeçaria que eu ainda não conseguia ver inteira. Será que o menino que eu era já pressentia que a vida é um jogo de empurrar águas, de encontrar ritmos, de alinhar os ponteiros internos com os do mundo?  

Havia tardes em que eu parava tudo só para ouvir o silêncio entre as músicas. Sentia o peso do ar, o cheiro de café vindo da cozinha, o som abafado da TV na casa do vizinho. Eram instantes que me faziam perguntar – sem palavras, só com o coração – por que eu sentia tanta coisa ao mesmo tempo. Era como se o Aquaplay, o vinil e o despertador fossem mestres disfarçados, me ensinando a olhar para dentro enquanto eu achava que só brincava. Anos depois, entre livros de psicologia, conversas sobre liderança e reflexões que ecoavam filosofias antigas e modernas, eu entenderia que aqueles momentos eram sementes.

A máquina de escrever, com seu clack-clack, era meu primeiro guru. Eu inventava histórias de naves espaciais que cruzavam galáxias, de guerreiros que enfrentavam dragões em florestas escuras, de amigos que se reuniam numa sala como a nossa para mudar o mundo. Não sabia que ali já ensaiava o poder das palavras, dos sonhos que moldam realidades, um sussurro de algo que os anos 2000 chamariam de “visualização criativa”. Meu pai, com seu jeito quieto, às vezes me olhava de canto, e eu sentia que ele sabia mais do que dizia – como se guardasse um mapa que eu só encontraria ao crescer.

O tempo passou como passam as faixas de um LP – umas arranham, outras encantam, todas deixam marcas. O 2 em 1 Philips ficou na memória, assim como o Aquaplay e o despertador, que sumiram em algum canto da história. A máquina amarela deu lugar a teclados digitais, mas o som das teclas ainda ressoa em mim, um eco de um canceriano nascido no ano do dragão, que carrega a água e o fogo nas veias. Cresci entre os anos 80, com seus cabelos esvoaçantes e sintetizadores, os 90, com seus primeiros bytes e rebeldias, e os 2000, com suas telas e promessas. E, em cada década, levei comigo aquela sala, aqueles instantes, como um fio que costura quem eu fui ao que me tornei.

Hoje, vejo que o menino do tapete não brincava apenas com água e vinil. Ele dançava com o tempo, com as emoções, com os enigmas que a vida espalha como pistas num jogo cósmico. Ele aprendia, sem saber, que o verdadeiro tesouro não está na estante, mas no que sentimos ao olhar para ela.
 
Que liderar é ouvir o tic-tac interno e externo, que transformar é apertar os botões certos na hora certa, que conectar é trocar Aquaplays e histórias com o outro. 

Reflexão da Crônica:

A história que se desenrola na sala da casa de meus pais, entre o giro do vinil, o balançar do meu Aquaplay e o tic-tac de um despertador, é mais do que uma memória nostálgica – é um reflexo da minha jornada humana. Eu brincava ali, perdido entre sons e sensações, sem saber que estava aprendendo algo essencial: a vida é um palco onde o autoconhecimento se constrói nos detalhes, nas pausas e nos instantes que parecem banais, mas carregam verdades profundas. Há uma aula silenciosa nessa narrativa, que me convida a olhar para os cantos da minha sala, para minhas estantes, e ouvir o que elas têm a ensinar.

Primeiro, há o vinil de Michael Jackson, girando no toca-discos com um som que atravessa o tempo. Ele me fala de ritmo – não só o da música, mas aquele que busco dentro de mim. Eu me perdia nas notas de "Billie Jean", e isso não era apenas distração: era um mergulho num estado onde o mundo externo se dissolvia e o interno ganhava voz. Quantas vezes eu já me vi absorto em algo – uma canção, um cheiro, uma lembrança – e senti que ali, naquele instante, algo em mim se alinhava? A lição que aprendi é simples, mas poderosa: prestar atenção nesses momentos é o primeiro passo para entender quem sou e encontrar o compasso que me guia.

Depois, o meu Aquaplay, com sua água dançando sob o comando dos botões, revelou outro segredo: a vida é um jogo de escolhas e ajustes. Eu apertava os botões, esperava, observava a bolinha flutuar, às vezes errava, às vezes acertava. Não era diferente de como navego nos meus dias – empurrando, testando, aprendendo a direcionar o fluxo. Há uma sabedoria nisso: reconhecer que nem tudo está sob o meu controle, mas que a maneira como reajo, como ajusto a pressão, define o resultado. Penso no último desafio que enfrentei: o que movi dentro de mim para encontrar a saída?

O despertador da Copa de 70, com seu jogador de perna inquieta, era um símbolo do tempo que não para – e da minha relação com ele. Eu o encarava, fascinado, sem saber que aquele tic-tac era mais do que um barulho: era um lembrete de que cada segundo carrega uma história, uma emoção, um pedaço de quem sou. Anos depois, procurei meu pai para perguntar sobre aquele objeto, como se quisesse resgatar não só a origem do relógio, mas a minha própria origem. Isso me ensinou que olhar para o passado não é apenas nostalgia – é um ato de coragem, uma forma de juntar os fragmentos que me moldaram e usá-los para construir meu futuro.

E a máquina de escrever amarela, que virava malinha, era o grito da imaginação que sempre carreguei. Eu criava histórias de naves e dragões, sem perceber que estava plantando sonhos que um dia germinariam em teclados digitais, em projetos reais. Esse é o poder da mente que sonha acordada: ela não só inventa mundos, mas pavimenta caminhos. Quantas vezes já imaginei algo impossível e, sem perceber, dei o primeiro passo para tornar isso real? Os sonhos, como os meus de criança, são mapas disfarçados – segui-los me levou a lugares que eu nem sabia que existiam.

Essa crônica me mostra que o autoconhecimento não é um destino, mas uma dança – entre o que fui, o que sou e o que posso ser. Eu não analisava, não teorizava; eu vivia, sentia, experimentava. E foi exatamente aí que cresci: nas trocas com o meu amigo, na curiosidade pelo meu pai, no som que me transportava, nos objetos que me cercavam. Para mim, a lição é clara: crescer é estar presente, é ouvir o silêncio entre as faixas da minha própria história, é transformar o cotidiano em um espelho da alma.

Praticamente, isso significa parar um instante hoje mesmo – olhar para um objeto da minha vida, uma música, um hábito – e perguntar: o que isso me diz sobre mim? Lembro que liderar a mim mesmo começa com pequenos ajustes, como no Aquaplay, e que transformar o mundo ao meu redor exige primeiro ouvir o tic-tac dentro de mim. A sala da minha infância é um convite: desacelere, observe, sinta. O que descubro ali é o que me move adiante.

E então, me pergunto: qual é o vinil, o brinquedo, o som que hoje me chama para dentro de mim mesmo? O que vou fazer com o que encontrar lá?

Um forte abraço!

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